Sobre a desigualdade social e a conivência

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Sobre a desigualdade social e a conivência

Balanço 2 (Darcy Ribeiro)

O Brasil cresceu visivelmente nos últimos 80 anos. Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido, desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro. Nossa jaula são as estruturas sociais medíocres, inscritas nas leis, para compor um país da pobreza na província mais bela da terra. Sendo assim, no Brasil do futuro, a maioria da gente nascerá e viverá nas ruas, em fome canina e ignorância figadal, enquanto a minoria rica, com medo dos pobres, se recolherá em confortáveis campos de concentração, cercados de arame farpado e eletrificado. Entretanto, é tão fácil nos livrarmos dessas teias, e tão necessário, que dói em nós… a nossa conivência culposa

Sobre o(a) autor(a):Grande educador e antropólogo de impacto mundial. Foi Ministro da Educação com pouco mais de 30 anos, Ministro Chefe da Casa Civil, vice-governador do Rio e senador. Foi imortalizado pela Academia Brasileira de Letras.

Provocações (Luís Fernando Veríssimo)

A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram lhe provocando por toda a vida. Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: – Violência, não!

Sobre o(a) autor(a):Nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá.

A Vida de Galileu (Bertolt Brecht)

Não há sentido na nossa miséria; fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido!… Esforço não é vergar as costas e arrastar, não é mérito!… A miséria não é condição das virtudes, meus amigos!… E não me venham com a beleza das riquezas que fomos capazes de produzir!…Se a nossa gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Mas hoje, as virtudes dos pobres nascem… da pobreza!Eu abomino isso! Sim, abomino! Ou vocês querem que eu minta a nossa gente?

Sobre o(a) autor(a):Bertold Brecht (1898-1956), nascido em Augsburgo. Escritor e dramaturgo alemão, além de grande teórico teatral. Desde menino escrevia poesias de forte conteúdo social. Foi perseguido pelos nazistas pelo seu comunismo militante.

Desbarato (José Saramago)

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela História, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas. De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miudezas se tivesse sabido aproveitar. A fraqueza alimenta a força, para que a força esmague a fraqueza.

Sobre o(a) autor(a):Um dos mais conhecidos autores portugueses contemporâneos, nasceu em 1922 – Portugal. Concluiu apenas os estudos secundários. Poeta, romancista, dramaturgo e tradutor. Foi o desemprego que o levou à literatura. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998.