A dor e a esperança nos olhos da timidez

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“O fabuloso destino de Amélie Polain”, 2001, é um filme francês com gostinho de sessão da tarde. É uma daquelas películas que gosto de indicar para incentivar a assistir filmes alternativos (fora do circuito convencional de cinema). É um filme mundialmente assistido e premiado. Tem uma fotografia linda porque mostra alguns pontos turísticos de Paris, principalmente a região do bairro de Montmartre, onde está o cartão postal: a igreja de Sacre coeur. A trilha sonora é quase toda instrumental e sem a participação de instrumentos elétricos como a guitarra dando um ar de nostalgia de uma França ainda romântica. Além disso, o filme conta com um roteiro cheio de combinações de cenas surreais que se encadeiam de forma mágica e natural, surpreendendo quem assiste. O filme também retrata de forma leve e bem humorada a dureza da vida de algumas pessoas que não tiveram a sorte de ter pais afetuosos ou ter desenvolvido habilidades sociais. Mostra também o mundo do tímido e a incompreensão de uma sociedade que frequentemente crítica e não respeita o espaço dele. O filme é marcado ainda por diversos desencontros amorosos, pelo medo do envolvimento social e por muitas pitadas de esperança e humor.

Amélie (Audrey Tautou) é filha de pais com dificuldades sociais e afetivas. O pai é um sujeito bastante estranho. Ele é obsessivo, preocupado com a exposição social e sem repertórios sociais e afetivos, além disso emite diversos comportamentos para evitar o mundo real beirando a esquizofrenia. O pai na infância de Amélie não gostava de tocá-la o que a mantinha em privação dos toques físicos. Como seu pai é um médico militar, uma pessoa extremamente regrada, ele tinha o hábito de consultar sua filha frequentemente. Uma cena quase que hilária e ao mesmo tempo triste é quando ele mede a frequência do batimento do coração dela e acredita que a mesma tem problema cardíaco (emoção por ser tocada pelo pai) e por isso exigiu que ela frequentasse a escola normal. A mãe então fica responsável pela educação dela dentro de casa. Mas, esta mãe não tem repertório de empatia e afetivo para poder educá-la. A mãe é muito crítica o que contribui para a filha desenvolver um medo ainda maior em lidar com as pessoas. Este medo também é decorrente da falta de contatos sociais frutíferos. Pessoas em um ambiente pobre de modelos sociais adequados, de recursos afetivos e ainda por cima hostil podem desenvolver repertórios diversos para lidar com isto. Em geral, repertórios inadequados. No caso dela, isola-se socialmente e cria um mundo de fantasia (reforço) e se torna uma pessoa sensível aos detalhes da vida: gosta de cinema (ver detalhes que ninguém vê), de colocar a mão em sacos de cereais, de jogar pedra nas águas do rio… Amélie é uma menina-mulher sensível e inocente. Uma menina observadora, deslumbrada, curiosa e inquieta com a vida. Uma mulher que tem dentro de si os poemas de Manoel de Barros: a riqueza por saber dar valor às insignificâncias da vida.

Amélie como sofre por ser sozinha no mundo ela acaba se identificando com pessoas também sofredoras: um funcionário que sofre bullying constantemente do seu chefe, um vizinho pintor que mora sozinho há 20 anos, o pai que vive solitário e que não sai da sua casa (zona de conforto), uma colega de trabalho hipocondríaca (carente), outro muito controlador e inseguro que não consegue lidar com o abandono e a rejeição…

Uma das cenas que dá origem ao fortalecimento do seu repertório afetivo é o dia quando Amélie descobre por acaso uma caixa de criança escondida em um buraquinho na sua casa, então ela tem a ideia de encontrar seu dono. Parece que como a vida não foi fácil pra ela, a mesma desenvolveu muito repertório associado à iniciativa e variabilidade para lidar com os contratempos. Ela apesar dos percalços consegue encontrar o dono da caixa e a deixa estrategicamente em uma cabine telefônica. O proprietário da caixa se emociona ao abrir e lembrar de fatos marcantes de sua infância. Ao reaver seus objetos ele tem a ideia de encontrar seu neto e conta isso pra ela chorando. Ela fica impressionada com a situação. Isso foi extremamente reforçador para Amélie que sente feliz por ter ajudado aquela pessoa solitária. Neste caso, fazer o outro feliz a deixou feliz. Fazer pelo outro produziu satisfação, fala-se então em altruísmo, generosidade, empatia, afetividade… A partir de então ela começa a ajudar outras pessoas porque descobre sua vocação. Uma nova visão de mundo.  Aqui é um bom exemplo de que ajudar os outros também é um bom exercício para facilita o contato com pessoas, poder trocar ideias, palavras e sentimentos e ser ajudado por tabela. Ajudar, neste sentido, envolve contingências sociais reforçadoras e cadeias comportamentais complexas. Um processo dinâmico que estimula a manutenção da atividade social.

O termo timidez tecnicamente é chamado de retraimento social, mas também tem várias outras denominações, como inibição e introversão. A timidez envolve um padrão de comportamento caracterizado por déficit de repertório nas relações interpessoais e um padrão de fuga/esquiva ou evitação do contato social. O que produz muito sofrimento. Há pessoas tímidas de todas as idades, em geral esse padrão começa na infância. Apesar disso, o tímido recebe pouca atenção das famílias, da escola e dos profissionais que trabalham com o público infantil. O fato do tímido ficar calado não atrapalha o andamento da aula podendo ser elogiando esse comportamento e o mantendo mais fortalecido. Pela sua dificuldade e pela falta de um ambiente que o compreenda e o ajude, o tímido então vive enclausurado em si mesmo. Ele deseja estar com as pessoas, mas não sabe como. Ou ainda ele quer seu espaço e espera que ninguém chegue perto e nem interfira. Quando alguém o faz ele se sente ferido e pode se fechar mais ainda. Não é fácil atender o tímido porque ele não te dá feedback se está gostando da conversa e muitas vezes o terapeuta pode achar que está fazendo a coisa certa em um quarto escuro. Para lidar com o tímido é preciso paciência, saber o que ela gosta e fazer ou conversar sobre o que ele gosta ou admira até criar um bom vínculo depois é necessário ir devagar sobre assuntos que envolvam seus medos. Gosto muito de usar atividades que envolvam filmes, quadrinhos, músicas porque sai um pouco da conversa direta que muitas vezes é aversiva para eles. Com eles, deve-se ir um passo de cada vez e as vezes até voltar para trás. Se ele der dica que não quer aprofundar algum assunto íntimo não adianta tentar porque corre o risco dele não voltar para a próxima sessão.

Amélie é uma pessoa com um universo gigantesco dentro de si e com dificuldade de expressá-lo porque não foi ensinada. Ela é tímida. Acredito que muitas pessoas tímidas são assim também. Elas não são compreendidas por seus pais ou amigos que em geral apenas cobram e exigem mudanças: Por que você não fala? Algum pássaro comeu sua língua? Assim você não vai conseguir namorar ninguém… Em contraposição, o que seria mais eficaz seria entrar no mundo do tímido, de início acolhê-lo mais para depois que o vínculo estiver forte poder dar algum feedback. O que acontece é que as pessoas não são especialistas em pessoas tímidas até mesmo porque nem daria tempo para ter todas as habilidades para se envolver com as mais diversas personalidades.

Outra atividade interessante da Amélie foi permitir-se aproximar do vizinho que era um pintor enclausurado devido a problemas de saúde. Eles criam vínculo em parte pela afinidade de interesses e por estarem no mesmo barco (medo de enfrentar o mundo). São sensíveis às sutilezas da vida. Há poesia dentro de ambos. Quando a relação está forte ambos tentam a sua maneira fazer com que o outro dê um passo para frente em relação aos seus medos. Há várias tentativas de ambos lados para que saiam da zona de conforto. Esse contato social foi primordial para as aberturas íntimas de segredos e manutenção e fortalecimento afetivo entre ambos. Um repertório que poderia agora ser usado para explorar novas amizades.

Em uma das cenas ela tenta mostra para o amigo descrente da vida que vale a pena. Ela mostra um vídeo de um homem velho com uma perna postiça que dança fantasticamente e dizendo que o importante é fazer da vida uma alegria e não viver chorando, colocando-se como vítima dela. Apresenta um cavalo que corre livre durante uma corrida de ciclismo. Mostra os pais com seus filhos recém nascidos nadando em uma piscina dando o ar da esperança, o zelo dos mais velhos com o bebê e a importância de estarmos em comunhão com outras pessoas. Nascemos para estar com os outros nestas águas da vida.

“O Fabuloso destino de Amélie Polain” é uma aula sobre a importância da amizade, de preocupação e ação para ajudar pessoas – algo tão fora de moda nos dias de hoje, da dificuldade que o tímido tem de enfrentar a exposição social e sobre a esperança no amor. É um filme emocionante e belo porque fala do básico: a importância da conexão afetiva entre pessoas para uma vida saudável.